Revista Enunciação - v.7, n.2 (2022)
Dossiê O Belo e as Virtudes
Em nossa sociedade industrial, massificada, preocupada com elementos reprodutíveis, o belo é visto como algo dissociado das ações humanas cotidianas. Estas são entendidas como úteis ou convenientes, enquanto o belo é deslocado para os palcos e salões, isolado de qualquer interesse diuturno. A revista Enunciação publica o dossiê temático O Belo e as Virtudes para se contrapor a essa interpretação e refletir sobre a conexão entre a beleza e as ações humanas. O presente número é composto de oito artigos originais e da resenha do livro de Nelson de Aguiar Menezes Neto: "A poética da mímesis e a composição dos diálogos platônicos", escrita por Luiz Otávio Mantovaneli.
O artigo inaugural da edição é de Francisco José Dias de Moraes: "Kalón, virtude e eudaimonía em Aristóteles". Em seu texto, Francisco enfrenta o desafio de compatibilizar a vida contemplativa com as virtudes éticas. O conceito fundamental para essa junção é o Kálon. Para isto, Francisco utiliza o exemplo emblemático da virtude da coragem, que, numa primeira leitura, revelaria o conflito intransponível entre o prazer que caracteriza as virtudes éticas e a compreensão do perigo mortal que é o fio da espada do inimigo. A solução está no compromisso que o combatente fez com os vivos e na desonra que procura evitar ao se manter firme no campo de batalha.
No artigo seguinte, "O desejo livre em Aristóteles", Juliana Ortegosa Aggio argumenta que o desejo virtuoso, em Aristóteles, caracteriza-se pela plena liberdade. Não há coação ao se desejar o bem. Ao contrário, o desejo virtuoso, como sustenta Aggio, é o desejo mais livre de todos. A coerção se dá por agir em conformidade com uma norma, abstendo-se de sua própria razão; ou quando se busca o prazer. A ação virtuosa é distinta justamente porque nela o prazer e o bem coincidem e não há mera obediência a uma regra.
Em "Pode o virtuoso não agir virtuosamente em Aristóteles?", Reinaldo Sampaio Pereira argumenta, diante do difícil problema da liberdade da ação do agente virtuoso, que a disposição do caráter não necessariamente implica que as ações concordem com tal disposição. Essa leitura não determinista possui a vantagem de evitar o esvaziamento da deliberação e da escolha, elementos fundamentais da ética aristotélica.
Em seu texto, "O belo na virtude da integridade em Aristóteles: réplica ao intelectualismo moral", Brunno Alves afirma que a integridade, diferente daquilo que defendem os intelectualistas, é uma virtude moral, nos termos de Aristóteles, o que a distingue de uma virtude intelectual. A conclusão é que o agente íntegro não age para preservar sua coesão interna, mas em nome da felicidade da comunidade política. O belo que o virtuoso almeja é a integridade da pólis.
Gabryela Schneider Gonçalves sustenta, em "A virtude da justiça e sua relação com o belo", que às virtudes pertencem ao ordenamento humano e não divino. O texto trabalha a relação da virtude da justiça com as leis e como o vício da pleonexia representa um obstáculo para a realização desta virtude. Gabryela explora as implicações políticas para essa noção de justiça, contrapondo-a ao sentido corrente, de origem liberal-democrática, de convivência entre cidadãos atomizados.
Em "Perfeição, emulação e morte: a beleza da vida pelo Amor (Eros) verdadeiro segundo o discurso de Fedro", Pedro Baratieri explora a ideia de “morrer-pelo-outro” a partir do discurso de Fedro no Banquete de Platão. Segundo Pedro, Fedro entende o Eros como uma busca que os amantes empreendem para serem honrados um ao olho do outro, o que os permitiria aperfeiçoar-se continuamente. A análise de Pedro sublinha o elogio que Fedro faz de Eros por tornar a vida bela e como o Eros se relaciona com as ideias de verdade e de justiça.
Messias Nunes Correia recupera o pensamento do filósofo britânico Roger Scruton sobre a centralidade do belo para a realidade como um todo e a existência humana, em particular. Em "O Belo e a Arte: Dor e Consolação na Estética de Roger Scruton", Messias demonstra o mesmo espanto que Scruton diante da arte contemporânea, que rejeita sistematicamente a beleza em nome de uma sociedade caótica e plural.
Em "A Paródia Sublunar: Paul Veyne, seus pensamentos, suas pessoas", Gustavo nos convida a pensar a nossa relação com os autores em geral e questiona a noção de referente. O raciocínio o leva a problematizar o princípio da identidade, ao menos, no que diz respeito à historiografia filosófica. Para isto, Gustavo utiliza o gesto elegíaco apresentado por Paul Veyne.
Por fim, Luiz Otávio Mantovaneli nos oferece uma resenha da obra de Nelson de Aguiar Menezes Neto: "A poética da mímesis e a composição dos diálogos platônicos". Segundo Luiz, a obra de Nelson Aguiar explora a dramaticidade dos diálogos platônicos e traz ao primeiro plano a figura de Platão como poeta.
Espero que os textos publicados nesta edição estimulem os leitores a pensar sobre a centralidade do belo ao longo da nossa vida. Nossas ações só parecem ser compreensíveis quando nos apropriamos dessa noção elevada, nobre, que engrandece a existência. Desejo a todos uma ótima leitura!
organizadores do dossiê: Francisco Dias de Moraes e Mário Maximo