Vol. 9 Núm. 2 (2024): É possível traduzir alétheia? Martin Heidegger e a questão da verdade v. I

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Para Heidegger, desde os anos 20 do século passado, a tradução de ἀλήθεια por veritas/verdade, juntamente com o conceito formal de verdade como adequação do enunciado às coisas, tornou-se problemática e digna de ser questionada. Em Ser e tempo (1927) e na preleção Da essência da verdade (1930), Heidegger chega a defender que a verdade do enunciado deriva de uma “verdade” anterior, direta, situada no comportamento prático. Para conferir peso a esta tese, advoga um retorno aos gregos e não hesita em recorrer a Aristóteles, negando, categoricamente, que o Estagirita tivesse, alguma vez, defendido que o “lugar” originário da verdade fosse o juízo. Heidegger, por sua vez, traduz ἀλήθεια por desvelamento (Unverborgenheit), acentuando precisamente o caráter privativo presente no “alfa” inicial da palavra. Ao pronunciar ἀ-λήθεια, Heidegger acaba conferindo protagonismo ao velamento em detrimento do disponível e do manipulável, do que se pode sempre constatar, assegurar, comprovar. Em O fim da filosofia e a tarefa do pensamento (1964), porém, o filósofo alemão afirma que “a questão da Alétheia, a questão do desvelamento como tal, não é a questão da verdade. Foi por isso inadequado e, por conseguinte, enganoso denominar a Alétheia, no sentido da clareira, de verdade”. Tendo em vista a centralidade do conceito para todo o percurso de sua reflexão, as consequências de tal constatação são múltiplas e complexas. Em face dessa complexibilidade e com a proposta de refletir sobre o futuro do questionamento heideggeriano acerca da essência da verdade - diante notadamente dessa constatação central e tardia do próprio Heidegger - realizou-se, nos dias 16, 17 e 18 de abril de 2024, e com apoio dos Programas de Pós-graduação da UFRRJ, UFRJ e UFPB, o Simpósio Internacional “É possível traduzir ἀλήθεια? Martin Heidegger e a questão da verdade”, título orientador deste dossiê.

O Dossiê será dividido em dois volumes, nesse primeiro volume, autoras e autores, por meio de seus artigos, nos convidam a refletir e debater esses caminhos e possibilidades do questionamento heideggeriano acerca da essência da verdade. Abrindo a seção dedicada ao dossiê Acylene Maria Cabral Ferreira, no artigo Verdade, composição e realidade virtual, mostra e analisa como a interpretação heideggeriana sobre a constituição da técnica moderna ainda é válida para nos esclarecer como se estrutura, fenomenologicamente, a tecnologia contemporânea. Manuela Santos Saadeh, por meio de seu artigo Sobre o problema da Verdade no pensamento de Martin Heidegger, realiza uma breve exegese da investigação que o filósofo faz a respeito da questão da verdade demonstrando como Heidegger problematiza fenomenologicamente tanto a estrutura da própria verdade, como a sua possibilidade enquanto desdobramento histórico do pensamento. Em seu texto, Verdade e Liberdade, Robson Costa Cordeiro descreve como a liberdade, longe de ser pensada como algo pertencente ao arbítrio humano, é refletida como a essência da verdade, sendo a liberdade de deixar-ser, de estar aberto para o encontro com as coisas em seu próprio abrir-se, doar-se. Lucas de Moura Justino Souza, no artigo Da essência da verdade ao acontecimento apropriador: o comum pertencimento entre e ser e o ser-aí na filosofia de Martin Heidegger, propõe uma reflexão sobre o vínculo da essência da verdade e o acontecimento apropriador no pensamento tardio de Martin Heidegger. Rebeca Furtado de Melo, no trabalho Lugar e verdade: hermenêuticas pluritópicas e pensamento situado, questiona a importância do conceito de lugar(es) para a hermenêutica. A investigação propõe um desdobramento da filosofia tardia de Heidegger, na qual a noção de lugar ganha proeminência progressiva a partir de 1940, a fim de evidenciar o aspecto espacial da situação hermenêutica, muitas vezes eclipsado pelo foco na temporalidade. João Evangelista Fernandes, no artigo O papel do sonho poético na fundação histórica da verdade do ser, expõe como a co-originariedade entre verdade e poesia está relacionada à noção de sonho poético e seu papel na fundação histórica da verdade do ser a partir da arte, tal como aparece na interpretação que Heidegger faz do poema “Recordação”, de Hölderlin. Finalizando a seção do Dossiê, Marcio Tavares d’Amaral, no texto Desvelamento por alétheia: o problema é de tradução?, pensa o termo alétheia a partir da interpretação, de inspiração heideggeriana, de alguns fragmentos de Heráclito, com o objetivo de tentar compreender um momento da história da verdade cujo “sujeito” foi o Real ele mesmo, e, a partir dessa reflexão, iluminar o momento atual da pós-verdade.

Ainda nessa edição, na seção fluxo contínuo, René Dentz, por meio de seu artigo A Complexidade do Ódio e a Paradoxal Busca pelo Perdão, aborda a intersecção entre psicanálise, filosofia e teologia ao explorar os conceitos de ódio e perdão em relação ao Outro. O ódio é examinado como uma emoção complexa que transcende o indivíduo, revelando-se como uma dinâmica social e política enraizada na relação com o Outro. Por outro lado, o perdão é apresentado como uma possibilidade paradoxal diante do imperdoável, desafiando noções tradicionais de transação e arrependimento. O perdão genuíno é entendido como uma abertura para o impossível, marcada pela capacidade de reconhecer a alteridade do Outro e praticar a hospitalidade como expressão da razão universal. Na seção de tradução, Leonardo Moreira Gomes oferece a versão em língua portuguesa do texto de Francesc Torralba intitulado Techno-progressives versus bio-conservatives. Nele, o autor busca apresentar o debate intelectual entre tecnoprogressistas e bioconservadores. A análise sobre o conflito entre as duas escolas é realizada através do exame de seus respectivos argumentos, além de explorar a possibilidade de encontrar um meio-termo entre as posições.

Agradecemos a todas e todos que contribuíram para a realização desse volume da Revista Enunciação e desejamos a todas e todos uma boa leitura.

Publicado: 2024-12-08