Revista Enunciação - v. 5, n.1 (2020)
Stásis é uma palavra de difícil tradução. Difícil não perceber quão insuficientes são as traduções usuais por “revolução”, “discórdia”, “dissensão”, “guerra civil”. O pensamento político grego, de Tucídides a Aristóteles, passando por Platão, sempre relacionou o termo stásis a um momento decisivo na pólis: origem de mudanças e de violência que atingiriam a todas as vidas na comunidade política. Em razão disso, ainda que se tratasse de um péssimo governo, a ruptura representada pela stásis foi sempre recusada, como alternativa política válida, pelos pensadores antigos. Recentemente, graças aos estudos da historiadora Nicole Loraux, o termo tornou-se objeto de renovadas reflexões, motivadas pelo revisionismo histórico, que enxergou na stásis o equivalente positivo da luta de classes e do anseio revolucionário das classes populares por igualdade, no sentido de uma crescente democratização. Filósofos contemporâneos, como Giorgio Agamben, inspirados pelos trabalhos da historiadora, empreenderam novas tentativas de elucidação do fenômeno, em diálogo com filósofos modernos, como Thomas Hobbes, e teóricos da política, como Carl Shmitt. O interesse pelo tema, para nós brasileiros, vai muito além de um interesse meramente historiográfico. Procuramos nos pensadores gregos elementos que nos permitam compreender a realidade perturbadora que vivemos hoje, marcada pela deterioração da democracia e pela escalada de práticas e discursos de caráter assumidamente autoritário. Quem pensa diferente de “nós” logo é encarado como o inimigo a ser aniquilado, “cancelado”, e não como o adversário de quem podemos perfeitamente divergir. Por outro lado, em tempos de stásis, parece aumentar enormemente a participação política e o anseio por novas formas de representação. Estaremos a caminho de uma maior democratização? É apenas a democracia liberal que entrou em colapso ou estamos vivenciando a derrocada da própria política e sua substituição por um poder autocrático? Podemos dispensar toda forma de concórdia, de amizade entre cidadãos, e substituí-la pelo facciosismo? A questão do bem viver pode ser alijada da esfera das decisões políticas, restando apenas a preocupação com a sobrevivência? A política pode ser reduzida à mera disputa pelo poder entre grupos facciosos ou, para além dessa disputa, podemos pensá-la em conjunto com a promoção das virtudes? A categoria de bem comum tem ainda algo a nos dizer atualmente? Essas e outras questões foram tematizadas e discutidas no evento sobre a stásis promovido pelo PPGFIL/UFRRJ e pelo grupo de pesquisa Zétesis nos dias 27 e 28 de agosto de 2019. O dossiê é o resultado direto do evento e reúne artigos dos pesquisadores que dele participaram, apresentando as suas comunicações.
O presente número da revista Enunciação, que prontamente aprovou a publicação deste dossiê, conta também com a contribuição de artigos submetidos ao fluxo contínuo, razão de publicarmos, na parte final do volume, artigos que nos brindaram com reflexões acerca da relação entre a morte e o sono entre os antigos, sobre a noção de paradigma em Platão e sobre a origem das ideias abstratas nos filósofos empiristas britânicos.
Editores responsáveis: Admar Costa e Francisco Moraes